Therezinha Luís: do céu ao Tietê
Por Juan Novaes & Leonardo Moreira
Ilustrações: Mauro Horita
Após austeras e insistentes batidas na porta do quartinho 590 (sem janelas e suficientemente minúsculo para ficar apertado, sem que mais de duas pessoas coubessem ali, devido a uma geladeira, duas cadeiras, uma cama, alguns produtos de limpeza e um ventilador sem a grade frontal), Therezinha Luís, ou Therezinha Tetê, recebe seus visitantes sorridente, de pés no chão, trajando uma blusa sem mangas cor de salmão que lhe desce até as coxas e uma bermuda psicodelicamente colorida de verdes, azuis, vermelhos e amarelos, ao acordar do sono a que a pressão alta a subjugara. Encastelada naquele cômodo, que abriga há cerca de dois anos na ocupação de moradia do Edifício Tietê, no centro de São Paulo, a senhora de face ensolaradamente distorcida por duas verrugas abaixo do olho esquerdo somadas a uma cegueira azulada na pupila direita, três dentes inferiores que há muito lhe faltam e uma cicatriz que lhe sobe à face rasgando desde o queixo até o lábio inferior, do lado esquerdo, esforça-se, visivelmente ofegante, para narrar sua história.
A conversa com Tetê é homogênea: lucidez e devaneios colidem a todo instante, tal qual partículas subatômicas. Alegrias e amarguras se combatem em expressões faciais, entre relatos circulares da época da infância e memórias da decadência da carreira musical que a mulher construíra apresentando-se no Bar Brahma, no Cartola, na Boate Sky, no Nostro Mundo, entre outros.
Getúlio Vargas dera o apelido a Ângela Maria: “Sapoti”, notando que a menina tinha a voz doce e a cor marrom do fruto. O pai, com quem Therezinha cresceu, ao lado da mãe, três irmãs e dois irmãos, tomou o vocativo emprestado para agradar a sagitariana, então com sete anos, que encantara o diretor da escola. O talento, recém descoberto, guiaria Tetê aos programas de Silvio Santos, Chacrinha, Alfredo Borba, Dárcio Campos e Raul Gil – aos 18 anos. O pai comprou um vestido especialmente para a aparição no programa do Velho Guerreiro, de veludo amassado, e insistia em que a filha deveria ser a mais bem vestida da ocasião.
As sobrancelhas fizeram ângulos completamente diferentes entre si enquanto a quase imperceptível tristeza lhe corria pelos olhos marejados.
A emoção com que falava do pai contagiou sua mente que tão logo se pôs a falar e já embaralhava – como em um jogo de cartas em um cassino – as ideias fugidias.
Maquinista. Essa era a profissão do “grande homem”. Repetia tais palavras tantas vezes e com tanto fervor que seu corpo, já cansado pela curta conversa e pela nítida falta de oxigênio do quarto, balançava e tremia.
E então a canção Naquela Mesa, de Sérgio Bittencourt, tornou-se a solução: Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim.
O pai logicamente lhe fazia falta e era tomado com grande admiração pela ex-cantora.
O operador de trem do interior, mais precisamente de Matão (aproximadamente 309 km de São Paulo), era um pai rígido e controlador; baseava–se em famílias tradicionais para a criação de berço de Therezinha.
A ideia de superpai ou patriarca na religião cristã ocidental era referência em qualquer família conservadora, católica e interiorana dos anos 60 (seguida fervorosamente pelo pai de Tetê, até aqui sem nome).
Apanharia por muito menos do que cantar, mas sabia que, no fundo, o som que saía do seu Sapoti era belo demais para ser calado.
Nozinha, casada desde os 12 anos, mãe complicada e chorosa de Therezinha impedira a grande viagem à Itália que a menina faria. As lágrimas que inebriaram um dia os olhos da mãe – opondo-se à turnê da filha -, transpuseram-se para o olhar doentio e pedinte da cantora.
A representação da própria mãe, a fim de emocionar os presentes como a progenitora o fez a Tetê há anos, não passava de uma introdução para uma nova música que viria trazida pela saudade, segundos depois: Romaria de Renato Teixeira.
Não escondia a dor das lembranças e sua inquietude revelou também as falhas em sua lucidez. A blusa sem mangas já lhe subia pelo corpo, deixando sua barriga à mostra. Relaxou o corpo, limitando suas ações que, havia pouco, emanaram grandes poderes musicais.
“Você está me gravando? Não vai gravar não, bem!”, disse, inesperadamente, enrijecendo-se e olhando para a caixinha preta que a registrara até o momento.
A risada que flutuava pelos corredores era uma mistura de admiração pelo belo cantar, surpresa por sua rispidez e o nítido conhecimento geral de sua quase loucura.
“Foi no tempo do Zeca do Cavaco, que morreu de tanto beber e fumar maconha”, que ela teve seu momento de glória – os 15 minutos de fama a que Andy Warhol se referira em 1968.
Naquela época, era Zeca no fumo e Tetê na “breja”; hoje em dia, ela se atemoriza diante da proposta de voltar aos palcos. Diz ter medo de ser levada pela bebida e acabar como Djalma Pires, morando sob as percussões de um viaduto. Na outra mão, a mulher parece desejar ver o reflexo de Carmem Joia no espelho, quando diz que a outra cantora tem 90 anos e ainda bebe. Não é impressão dos presentes sentirem o olhar da ex-cantora parecer subitamente magnetizado e seguir uma caixa de cerveja que um morador passando por ali carrega. Tetê, que já se submetera a tratar o alcoolismo, faz o convite a si mesma: ir beber com o vizinho mais tarde. Os anseios da mulher não têm remédio - e a inquietam; o vizinho só fez assentir.
O esforço é apenas o de virar-se para o lado, encarando a porta que dá acesso ao corredor em que seu quartinho se encontra e, com os dedos em posições angulares, fazer digitações ritmadas na madeira, porque “cantar sem acompanhamento não dá, bem”.
A psicologia que Tetê sonhara cursar não explicaria o instante em que cantou Se acaso você chegasse, de autoria de Lupicínio Rodrigues: as mãos expressando-se em veias e o quadril acariciando o ar, a voz que teria sido lapidada no “conservatório de deus” ilustrada no olhar cerrado, que viajava aos anos de brilho e embriaguez, voltando, por vezes, para espiar a reação de seus inquisidores.
Sendo a personificação da glória e do descaso, dos paradoxos, alucinações e uma lúcida sabedoria – traduzida em um bom português -, recusava-se a chorar ao falar das não realizações.
Em pedaços, a conversa se materializava e desmanchava com a mesma facilidade. Quadros. Flashbacks complexos que prendiam e requeriam grande concentração.
Acompanhar Tetê seria tarefa difícil se seu corpo não denunciasse os momentos de desligamento com a realidade. As verdades apareciam mascaradas e dentre elas a morte do noivo veio à tona como um tiro à queima roupa.
Contava-se apenas uma semana para o casamento. Tinha 18 anos quando o noivo (estavam há cinco anos juntos) morreu em um acidente de carro.
Apesar de narrar paralisada e dizer que nunca mais amou ninguém, a alegria não saiu do rosto da mulher. A única que ficara sozinha dos cinco filhos de dona Nozinha, suspirando forte, pensava alto: “naquela época era amor, agora é conveniência”.
Mudando o tom, a cantora lembrou-se de um grande amigo que conheceu na antiga Febem: Paulo Collen. Segundo Tetê, ele tinha apenas 9 anos quando a elogiou pela sua performance em uma apresentação que fizera no local junto a amigos da Vai-Vai.
O desgaste pelo consumo de álcool irritava o rapaz, que considerava Tetê uma irmã depois de muitos anos de amizade.
Olhos apertados. Tetê esquecera o nome do livro de Paulo e passados alguns minutos – de completo silêncio – gritou para si mesma, punindo–se pela falha.
Dissera que o visitava muitas vezes antes da fama do livro “Mais que a realidade” (lembrou depois de forma natural) e que até ajudara com as vendas nas faculdades próximas do centro de São Paulo.
Até agora, o comportamento de Therezinha caminhava junto de suas palavras, oscilando nos momentos tristes ou muito felizes. A empolgação que demonstrava ao lembrar momentos com “Paulinho” na porta das casas e até a forma bem humorada como tratou da separação confundiu os presentes. Seria mentira? Como tratar com tanta serenidade a distância de um amigo (talvez o único)?
A bebida, como tudo na vida de Tetê, deixou sequelas, cicatrizes perpétuas.
O corpo sofreu, mas a mente ganhou novas percepções com o acúmulo de medos e as latentes experiências tristes.
Desconfiada pela nossa dúvida, finalizou a conversa, deixando uma desagradável sensação de confirmação. O que essa misteriosa personagem pensava?
Tentamos, por mais duas vezes, em dias posteriores, encontrar nossa protagonista – sem sucesso.
Na última, aos ecos pendulares dos sinos, que tilintavam dando ares místicos aos entornos da Igreja de São Bento, somaram-se os olhares de desaprovação dos santos (Expedito, Lucas, Nossa Senhora de Aparecida e Jesus), que censuravam as pancadas na porta da mulher. Os moradores, em um vaivém ininterrupto, fitavam-nos, também com faces sisudas, mas menos pela insistência em acordar Tetê do que pela intromissão naquela cúpula do exílio social: o Edifício Tietê.
“Quem é?”. Sem fazer questão de cerimônias, Tetê finalmente se manifestou, e, provando que a esperança era intermitente, pontuou que não iria falar mais.