Legitimidade Técnica
Casal de peritos judiciais mais famosos do Brasil conta suas histórias
Por Marcelo Pedrosa
Era uma tarde quente de um feriado, sexta-feira. O taxista, como a maioria deles faz, ia batendo um papo descontraído comigo. Num determinado momento, ainda imbuído desse instinto curioso dos choferes de praça, ele começou a sondar o que eu ia fazer no endereço de destino. Não perguntava diretamente, é verdade, mas se percebia claramente que a sede da curiosidade lhe secava a garganta e que ele buscava um refresco. Então pensei: “É isso! É esse tipo de approach que eu devo ter com meu entrevistado”. E, realmente, eu precisaria de um approach pertinente, pois o meu, ou melhor, os meus entrevistados não são qualquer um, ou dois. São os mais conceituados e requisitados peritos judiciais do estado de São Paulo, o que significa dizer que também são os mais renomados do Brasil, Orlando Gonzalez Garcia e Maria Regina Faria Hellmeister.
Eles me receberam em uma simpática casa na Granja Viana, nos arredores de São Paulo, onde funciona o escritório de Maria Regina. Trabalhando em pleno feriado, os dois fizeram uma pausa para conversar comigo. A pilha de processos sobre a mesa da perita me fez pensar no quanto eles trabalhavam. Sem perder tempo então, após as apresentações de praxe, comecei a agir como o taxista e perguntei como começaram na carreira de peritos judiciais. Orlando explica que eles se conheceram na faculdade de direito e após o término dela, Maria Regina prestou um concurso público para a polícia técnica do estado de São Paulo. Após aprovada, foi designada então para o departamento de documentoscopia (falsidade documental) do instituto de criminalística. Com a experiência adquirida no serviço pericial ao longo de vários anos, Maria Regina começou a atuar na área cível, onde os juízes nomeiam peritos de sua confiança. Ela então começou a ser indicada para diversos processos, nos quais Orlando começou a ajudá-la com a parte jurídica. Ambos perceberam que o casamento de suas habilidades era um sucesso comercial, à parte do casamento em que eles de fato conviviam. Em 1990, a pedido da Corregedoria Geral do Estado de São Paulo, eles montaram um curso de grafotécnica (falsidade da escrita) para ajudar os cartórios de notas Paulistas a se prevenirem contra fraudes. Esses cursos se estenderam posteriormente a outros estados e mais adiante aos departamentos de compliance de bancos, seguradoras, corretoras de valores, à própria Bovespa e BMF e outros ramos de atividade empresarial. Somando tudo, são 22 anos de trabalho como peritos judiciais e dando cursos, ao longo do qual eles construíram uma sólida reputação, bem como uma coleção enorme de laudos, trabalhos e também muitas histórias.
Gratuidade até para quem não precisa
A entrevista seguia em velocidade de cruzeiro. As respostas se sucediam às perguntas e novas histórias surgiam. Entre um cigarro e outro fumados do mesmo maço por ambos, eles falavam de muitas coisas. Do sucesso financeiro, da situação atual do judiciário paulista e da gratuidade de muitos trabalhos. A respeito deste último assunto, Maria Regina fez questão de dizer que mesmo num feriado, ela estava trabalhando num laudo sobre o qual não receberia um centavo, pois uma das partes havia conseguido assistência jurídica gratuita e a outra era uma empresa fantasma. “Eu faço uma ficha num laudo desses e ponho: Não há possibilidade de recebimento de honorários”, disse Maria Regina. Pegando essa linha de raciocínio, os dois me contam que há hoje um abuso no uso gratuito da justiça. Eles citam o caso da atual esposa do ex-prefeito Celso Pitta, que conseguiu o benefício, e dizem que há casos em que o juiz até suspende a gratuidade e determina o pagamento de honorários, quando este constata má fé ou abuso no uso do benefício legal. Somado à “obrigação moral”, segundo palavras da própria Maria Regina, de atender aos juízes que costumariamente a honram com indicações para processos, os casos de trabalho que ela faz sem recebimento de honorários não são tão poucos. A gratuidade que ela gostaria mesmo de fazer é um curso para os magistrados iniciando no ofício, pois ela entende que muitas distorções do uso da letra fria da lei poderiam ser evitadas com a orientação correta. Orlando, observando-a calmamente, atesta com sua expressão facial o que diz a parceira.
O caso PC Farias
Orlando e Maria Regina participaram de um dos momentos mais marcantes da história recente da política brasileira, a CPI do PC Farias. Conhecidos por sua honestidade, fama que foi conquistada desde o tempo que eles notificavam imediatamente o juiz quando eram abordados por partes interessadas com propostas esquisitas, eles foram designados como os peritos oficiais da Comissão que investigava aquele que era então a rainha do tabuleiro de xadrez do poder na capital federal, Paulo Cesar Farias. Considerada pericia mais famosa da história brasileira, Orlando e Maria Regina provaram com seus laudos a existência de fantasmas e laranjas, o que culminou com o impeachment de Collor. Você consegue ter idéia do que é participar de forma decisiva e legítima do impedimento do primeiro presidente eleito democraticamente nos país depois de 25 anos de ditadura? Se for muito pra você digerir, imagine então que por um trabalho tão importante como esse eles receberam a quantia de ZERO, isso mesmo, ZERO reais! Não que esse tenha sido o valor que eles cobraram, mas foi a quantia que a CPI efetivamente pagou pelos serviços dos peritos. Nem o valor da revelação das fotos, cerca de 800 imagens que na época tiveram que ser reveladas, foi reembolsado. Passagens aéreas então nem pensar. Citando um caso pitoresco envolvendo o episódio, Orlando conta que depois disso eles foram convidados a participar da apuração de outro escândalo, o do deputado João Alves e a máfia dos anões do orçamento. Contatado por telefone por um parlamentar, Orlando lembra então ao deputado com quem falava que eles não haviam ainda nem recebido pelo serviço da CPI do PC e que se eles quisessem contratá-los novamente, que depositassem um determinado valor como adiantamento. Tão logo se constatasse o recebimento do dinheiro, os peritos se dirigiriam a Brasília. O deputado, fazendo ar de surpreso com a inadimplência, disse que em dez minutos o montante estipulado estaria na conta do perito e desligou o telefone, porém sem nem ao menos perguntar o número da conta onde deveria fazer o depósito. Conclusão óbvia, os peritos não trabalharam mais com o congresso. A constatação da picaretagem dos deputados e do sentimento de terem sido lesados não dever ser realmente fácil de engolir. “A mídia toda falando da gente e a gente não conseguiu receber nem um tostão. O que eu vou receber? Um precatório? Ou meus netos vão receber um precatório? Então às vezes eu cito isso como uma injustiça”, declara enfaticamente Maria Regina. Orlando acrescenta que desde 1993 eles tentam por meios legais receber o valor pelos trabalhos prestados. Até agora, nada. Um verdadeiro laudo técnico dos usos e costumes o legislativo brasileiro.
Os Malvados e o coitado
Uma de minhas perguntas ao casal foi qual o falsário mais irremediável que eles conheceram e se por outro lado, eles haviam cruzado com algum que tenha entrado em uma jogada desonesta de gaiato. Então vieram duas histórias de malvados e uma de coitado. A primeira de história de malvado conta que Rui Cesar de Mattos Vianna, advogado que está foragido da justiça, falsificou a assinatura da irmã no processo de partilha dos bens da mãe...que ele mesmo havia mandado matar! Além disso, ele também tentou matar o pai, que foi à TV denunciar o filho. Ainda segundo o que foi publicado em jornais na época, quando preso em flagrante no Hotel Mofarrej em São Paulo, Mattos Vianna engoliu um cheque para tentar escapar do flagrante. O falsário havia desfalcado também uma empresa de factoring, a BANPAR. Outra história de malvado foi de um auto-falsificador, que é aquele que assina de uma forma que futuramente sua assinatura não seja reconhecida como sendo dele, tudo isso de caso pensado e com intenções fraudulentas. Ele – Orlando me pede para não citar o nome do acusado por prudência jurídica- era um falsário muito habilidoso e Maria Regina conta que em uma das vezes em que colheu material gráfico do sujeito, o que é basicamente o ato de fazer com que o suspeito assine e escreva para detectar suas características de escrita, ela ditou rapidamente um texto para que o criminoso não tivesse tempo de forjar uma caligrafia que não fosse sua. Posteriormente, quando ela foi analisar o material, ela viu que no meio de todos os parágrafos do ditado o falsário havia escrito: CHATA! CHATA! CHATA! Maria Regina diverte-se lembrando disso. Já a história do coitado não a diverte tanto assim. Ela conta que um falsário comprou um cheque e tentou passá-lo num supermercado. O problema foi que ele assinou seu nome por extenso, que era diferente do nome inscrito no cheque. Resultado; seis meses de prisão até Maria Regina ser chamada como perita no caso. Ela olhou a lista de mercadorias que o falsário tentou comprar e dela constavam itens de primeira necessidade como arroz, feijão, farinha, etc. Ela conta que chegou a ficar sensibilizada com o caso, embora nada justificasse a fraude.
Conversa vai, conversa vem...
Íamos longe nos casos e nas histórias. Olhei o meu gravador e ele marcava 54 minutos de conversa. O monte de casos na mesa dos peritos continuava enorme e eu comecei a achar que talvez eu estivesse atrapalhando o andamento do serviço deles então pensei então que era hora de terminar com a entrevista. Lá fora, o céu se tornara cinzento e os trovões começaram a soar anunciando que vinha chuva pesada pela frente. Desliguei o gravador e me lembrei de uma conversa que havia tido com Maria Regina pela ocasião de um curso dado por eles que eu tinha assistido. Nós havíamos falado sobre problemas na tireóide, dos quais eu sofro, e então levantei o assunto novamente. Foi então que a conversa, sem estar “engessada” em nenhum roteiro pré-estabelecido ou planejamento, se tronou prazerosa. Sentia-me estranhamente à vontade com aqueles a quem pouco conhecia. Conversamos sobre casamento, profissão e muitas outras coisas da vida. A chuva então começou a cair e senti que era hora de ir embora. Despedi-me e fui caminhando até o ponto de ônibus distante uns 600 metros da casa. No caminho, mil pensamentos borbulhavam efervescentes na minha mente, mas por mais diversos que fossem estes, eles seguiam um fio condutor de um sentimento de que, havendo mais tempo, eles teriam muito mais histórias para contar. Fui embora com gosto de “quero mais”.